Observando a equidade na saúde através dos olhos dos sem-teto

Um ensaio médico no Brasil

Por Ana Machado Spósito Galdino 

Foi no final de 2022, durante um projeto escolar oferecido pela querida professora Aline Arruda, que eu li o livro “Ensaio sobre a cegueira” de José Saramago. Renomado escritor e Nobel de Literatura, Saramago atravessou-me com suas palavras sobre a fragilidade da sociedade diante de uma epidemia de cegueira, analogia usada genialmente para apontar aqueles que não percebem a realidade tal como ela é e, indo além, evidencia àqueles que perderam a conexão com o Outro entre as relações humanas.

“Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.” (José Saramago)

Prólogo do livro “Ensaio sobre a Cegueira” de José Saramago – Arquivo pessoal

De volta a 2023, tive o prazer de ser introduzida ao projeto Médicos nas ruas, sobre o qual atuo como embaixadora na região de Belo Horizonte, quando fui novamente tocada por Saramago, que me lembrou sobre a importância de enxergar além do que se é visto, sob as lentes de uma população invisibilizada, mas que sempre esteve lá.

Por fim, foi nesse ano de 2024 que tive a honra de estudar Saúde Pública sob uma perspectiva biosocial, curso administrado pela Universidade de Harvard. Me recordo vividamente de, em um dos meus primeiros contatos com os então professores, ouvir do falecido Paul Farmer “O mundo não é dividido entre os saudáveis e os doentes, mas entre aqueles que têm acesso à saúde e os que não têm.” Aquela frase me marcou. Me marcou porque eu me lembro de tê-la ouvido outra vez em outro ambiente, de outra maneira. Me marcou pois eu sabia que a saúde, os direitos básicos, são oferecidos aos que são notados, percebidos e vistos por uns. E que nós, ao longo do tempo, aprendemos a nos cegar, invisibilizar, acostumar diante de outros. Como então nós podemos ver a realidade tal como ela é?

Durante o meu tempo no projeto, anotei alguns questionamentos e percepções que gostaria de compartilhar:

Quais são os potenciais impactos do projeto no combate da crise climática? Com duas pautas relevantes e atuais, como interseccioná-las em torno de um propósito comum?

Eu diria que a redução das desigualdades é o principal fator. Pessoas em situação de vulnerabilidade socioeconômica são frequentemente as mais vulneráveis aos efeitos das mudanças climáticas, a exemplo da ação de emergência realizada quando, em Agosto de 2024, as queimadas favorecidas pelo tempo seco foram tamanhas que inundaram o Brasil em fumaça tóxica. Foi graças a uma ação de emergência, em que foram distribuídos soros fisiológicos e máscaras, que essas pessoas conseguiram ter os efeitos climáticos mitigados na sua saúde respiratória.  Estima-se que, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), entre 2030 e 2050, as mudanças climáticas causarão aproximadamente 250 mil mortes adicionais por ano devido à desnutrição, malária, diarreia e estresse térmico. As populações vulneráveis são particularmente suscetíveis a esses efeitos, uma vez que carecem de abrigo adequado e o acesso básico a cuidados médicos. Ao oferecer assistência sanitária, portanto, o projeto melhora a capacidade dessas pessoas de resistirem e se adaptarem a condições ambientais diversas, o que reduz a pressão sobre sistemas de saúde em crises climáticas.

Quando o assunto é: perspectivas em tempos de mudança, o que vem à mente em relação ao Médicos nas Ruas?

A primeira frase que eu pensei foi: Inovação em saúde pública. Em tempos de mudança, o projeto oferece uma resposta criativa e adaptada às necessidades de uma população muitas vezes esquecida. Ela preenche lacunas em sistemas de saúde tradicionais que, frequentemente, não alcançam as pessoas em situação de rua. É a maior prova de organização através da resiliência comunitária de pessoas que querem ajudar o próximo. Desde a sua criação, o projeto já atendeu mais de 40 mil pessoas em situação de rua e conta com mais de 4 mil voluntários servindo a um único propósito: a democratização do acesso a melhores condições de vida. Além disso, a Rede de Pesquisa em Políticas Públicas de Saúde no Brasil estima que iniciativas como a nossa poderiam reduzir em até 15% dos gastos públicos com saúde a longo prazo, ao prevenir complicações que se agravariam sem assistência.

Registro de uma das ações realizadas pelo grupo Somando mais ações com duas voluntárias ao fundo. – créditos: @fotosvab e @akezzialine

De alívio social a quebra de paradigmas: como enxergar além através da mudança?

A rede de apoio desempenha um papel crucial no processo de recuperação dos sem-teto e potencializa as chances de saída das ruas. A dignidade aliada à mitigação da insegurança alimentar oferece suporte e atua como motor de mudança pessoal.

Ação conjunta realizada com o “Médicos nas Ruas” e “Veterinários nas Ruas”- créditos: @35elementos

Ações locais, impactos globais

As perspectivas que mostram como o projeto se adapta e evolui em meio a dificuldade são variadas, oferecendo soluções humanas para problemas urgentes da atualidade, é necessário agir localmente com impacto global. Embora as ações sejam locais, ele é uma resposta a um fenômeno de nível global que ocorre em meio a crises migratórias, urbanização acelerada e a exclusão social. É ao proporcionar intervenções aparentemente simples, como kits de higiene e máscaras, que o projeto cria precedentes que pode focalizar políticas públicas focadas em inclusão e saúde preventiva, algo essencial em um mundo cada vez mais marcado por crises globais interconectadas.

O Médicos nas Ruas, assim como os demais participantes de toda a teia, como o Enfermeiros nas Ruas, Bem da madrugada (com o objetivo de suavizar as dificuldades enfrentadas nas ruas através da distribuição de kits de higiene e de alimentos), Navalhas nas Ruas, entre outros, carregam a mensagem que, em tempos de mudança, ações comunitárias podem ser parte da solução para desafios maiores, influenciando políticas públicas e práticas globais.

O projeto não apenas oferece assistência imediata ao alívio de mazelas sociais, mas cria uma nova forma de pensar a saúde pública e o contato humano, centrada em quem, tradicionalmente, é deixado para trás. Ao estabelecer redes de apoio em locais vulneráveis, ele molda um novo paradigma de cuidado que pode inspirar políticas públicas cada vez mais inclusivas. Em tempo de mudanças rápidas e complexas, os projetos mostram que a verdadeira inovação está em ações coletivas e conscientes. Essas ações locais podem servir de exemplo para iniciativas globais, mostrando que a resiliência e a solidariedade comunitária são forças poderosas para enfrentar os maiores desafios da nossa geração.

Enxergar as realidades ocultas é o primeiro passo para a transformação social. Hoje, te convido a enxergar para além das aparências, a reparar nas vidas que passam despercebidas. É urgente que olhemos para o outro com empatia e ação. A verdadeira mudança começa quando decidimos não apenas enxergar, mas nos envolvermos ativamente com aqueles que mais precisam. É “ver o que está à nossa frente e não desviar o olhar”, como Saramago dizia.